segunda-feira, 30 de março de 2009

acho que é sobre a juventude bastarda pelo excesso

Meu herói se pinta com sangue sujo usado e emporca as mãos de graça, diz que tudo já foi dito, consola-me somente em seu descontentamento regado de desespero cotidiano e alegria de mármore.
As palavras estão estatizadas no mármore da cozinha,
Duras como um nome riscado em pedra

Minha humaneza é dor lapidada

Um fundo oco. Um grão.
Que vê, ouve, mas
não viu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Todos os dias acordo com os olhos inchados de pus e escorrendo sangue, feridos. Olho-me ao espelho com a cara amassada e sinto-me nauseada pela meleca gosmenta que escorre daqueles dois cortes abertos e vivos. E depois de ver-me com um pouco de dificuldade, todos os dias, lavo os olhos com água boricada, uma solução minha para o meu problema. O sangue vai mas o peso continua, fica como um ruído agudo zunindo no centro da minha cabeça. Costumo encher o dia de músicas, arrumar coisas pra fazer e depois cansar-me, descansar, passar mais duas ou três horas no meio do dia deitada de bruços, assistindo a uma cena, seja em minha mente, seja no cubo de açúcar... ou então saio às ruas e descubro o mesmo peso nos meus passos mudos que deixei pra trás em meio a multidão, calados em meio ao que parece o lixo do que parece a alegria. Conto comigo mesma os meus grãos de vivacidade, todos os dias, como minha mãe provavelmente faz com as contas, o aluguel da casa, às vezes com um pouco de vitória nos olhos. Para vê-los brilhar como os olhos das pessoas e da minha mãe, preciso sempre "gastar" meus grãos, meus esboços com a solução pra minha vista... E aí percebo que todos os meus esforços são para manter-me vendo, mas nunca toco, não pego na meleca gosmenta do caos. sei lá..

domingo, 15 de março de 2009

Sobre os cachorros loucos

Queria dizer sobre as flores mas há o asfalto. E nele fervemos com o calor suando entre os dedos, atrás das orelhas; nele nossa desesperança, nossos passos estacionados, zona azul. Nossas roupas, nossos olhares atentos, a bosta quente, nele o ovo frito. A gordura, os nomes vendendo, nele a paz urbana com um nó no pescoço. Deus, nele nosso altruísmo, nossa esperança também, nele a pretensão de eu ser. A escadaria, nele nossos joelhos, pedregulhos e marcas de pneu, marcas à pau. Nele as sacolinhas recicláveis. Nele um canto de nossa culpa em concreto armado, o sangue de menstruação. Nele nós, a flrozinha e tudo o que somos chapinhado em arame farpado nos muros ao redor do asfalto.

sábado, 14 de março de 2009

Viver é legalzinho e dói

Categórica e um pouco vestida de macho pedi com o troco de mamãe mais uma cerveja no china sujo da esquina. Nada me veio a não ser prazer por estar cedendo, aos poucos zonza pelo álcool, e o alívio de tornar-me cada vez mais um corpo guiado por suas funções puramente biológicas. Um velho sulcado mexeu comigo e de raiva acabei derrubando um filete de bebida no meu uniforme, merda!, gritei alto enquanto caminhava até o banheiro. Ao abrir a porta um cheiro insuportável de mijo inundou-me e senti-me podre por estar ali, imunda mas pelo menos melhor que as paredes, formavam um mosaico escuro de merda, papel higiênico e provavelmente porra de um velho daqueles, adorava palavrões. Tapei o nariz e segurei a respiração, mesmo assim tive ânsia mas hoje aguento, pensei. Olhei-me ao espelho sorrateira, neguei-me porque talvez olhar-se assim fosse coisa dos outros, que tanto dizem. Com um pouco de culpa por ser feia voltei-me para baixo e, como uma oração, pensei alto, baixinho: queria ser os outros. Queria que minha mãe não existisse. Queria que minha mãe fosse eu. Fixa para baixo senti o gelado da água me molhar, enxuguei as mãos e pedi ao china um copo de plástico.
Com as mãos cheias e todo o corpo inebriado fui até a praça. Sentada ao pé da escada desabei como uma lesma cheia de ternura. De olhos abertos mirei o céu, tudo o que vi foi fruto de um esforço tremendo. Nas laterais de minha visão haviam placas e caquinhos pontiagudos de um mosaico que eram as pessoas vestidas. Tive a impressão de ser uma cor desbotada, sou cinza, encarei, mas eu gosto, gosto assim. Cuspi ao chão meu gosto encômodo de cerveja amarga. Perguntei-me sobre deus uma última vez pois naquele momento, justamente, alguém passava, uma garota com cabelos presos e castanhos, camisa solta e cortada, calça jeans apertada, all-starzinho branco, num corpo tipicamente branco. Em outra situação talvez achasse ser a minha figura andando do outro lado da rua, pelo menos a que eu gostaria de ver. Pena que não era e estava ali, com o catarro de minha garganta colado ao seu tornozelo infantil. Fiquei surpresa mas meu olhar bêbado não demostrava nada a não ser tédio, provoquei-a sem querer e, querendo menos ainda, soltei um risinho atrevido. Mais surpresa veio:
- Merda de menina! Seu papai te ensinou a ir à escola mas você não gosta dele então cospe nos outros, é?... às vezez bebe, às vezes se masturba também, pra aliviar um pouco, mas aí é lembrando da mamãe... eu não sou seu pai nem sua mãe, garotinho!, segurou-me o rosto forçosamente com uma das mãos e beijou-me a bochecha esquerda, irônica. Com a outra cravou-me suas unhas tão desbotadas quanto eu. Por um momento achei que a moça usava-me, senti algo como uma falta no estalo de seu beijo, mas, ainda assim, era corrosivo, sua saliva ácida molhou-me como uma outra lesma procurando. Senti nojo, ódio, talvez em choque, alegre por algo assim acontecer a mim. A tinta vermelha dos meus cabelos parecia escorrer transfigurada até o pulso e então dissipava-se entre as pontas dos dedos, alguns deles apontando o meu peso juvenil resplandecente na cara dela. Soquei-lhe. Pra falar da briga eu mudo de parágrafo.

Um pouco surpresa e animada demais estralei as costas, pedindo. Não nego que me achei ridícula, mas eu estava ali. Medrosa pelo que viria e mais viva que nunca, cor de sangue. Então a raiva dela me olhou como resposta, negra, angustiada. Tomei um gole quente enquanto ela chegava cada vez mais perto, à cada baforada sentia seu hálito fresco. Mais perto, enojava-me sua espinha. Olhos nos olhos, aconteceu identificação, o segredo que eu era nos cílios dela e vice-versa. Nariz contra nariz, por um momento engoli saliva úmida até o útero, estranho mas desejei-a, nua e morta. O tempo ausente, enfim sua boca chegou perto demais e berrou, um grito espantador cheio de falas. Gerou um silêncio verborrágico e a contagem do tempo novamente. Entorpecida pelos goles e o grito pisquei e vi um vulto na direção de meu nariz. Senti minha cara ardendo em suas mãos, de novo entre aquelas dobras, porém tomada por um gesto um tiquinho mais hostil. Estava simplesmente no meio de tudo sem nenhum esboço de reação, bêbada, escrota, vítima, perigosa. Chacoalhei a cabeça para olhá-la novamente, mas agora era seu pulso em mim. Caí.

De cara na bosta mole, caí. Pude ouví-la rir, me enervou. Então busquei forças para levantar-me. Levantei e num pulso só agarrei-a com muita força, cerrava os dentes com a cara suja de merda, tão imunda quanto o banheiro. Ouví-la gritar mas dessa vez gemendo, implorando porque mostrei-me maior. Naquele pulso beijei-a, com a cara toda suja, o caos. Ela soltou-se e vomitou de nojo, enquanto corriam em volta fantasmas em formas masculinas. Alguns garotos haviam se aproximado, uns mais velhos, a maioria da mesma idade. Reconheci dois do colégio e enquanto chamava-lhes pelo nome minha boca ia ficando sem dentes.

Os moleques tiraram a garota de perto, chamaram-na pelo nome também e depois encarregaram-se de mim. Quis discutir, apelei, gritei, "covardões!", mas a praça daquele bairro era deserta o suficiente, os moradores e quem costumava frequentá-la era algo como a escória de outras praças, havia constantemente abordagens esquisitas mas em bom português por ali. Então eles se apossaram dos meus passos, fizeram uma roda e como maníacos começaram a correr em círculo fechado, formando um leve redemuínho. Sentia minha costela contra suas solas, tão sem cor quanto eu e as unhas dela. No começo desesperei-me, revidei, mas aprendi que não me machucariam muito, só precisávamos aliviar nosso nojo e nosso cansaço, nossa infanciazinha molestada, como a garota fez quando falou e como eu, quando cuspi. Tive medo que me quisessem mas responder seria pior. Deixei. Foram-me aniquilando, aniquilando, aniquilando, apagando... da última coisa que me lembro foram as palavras sem sentido saídas de seus dentes, os dentes dela, e me atingindo em ondulações, palavras retalhadas, como ferida madura. Vi de novo seu desespero mas já não sei se sonhava... Acordei ensanguentada, sangue escorrendo do nariz e manchando o sorriso eterno na boca da estátua de getúlio. Engoli minha saliva áspera e senti o gosto de meus dentes quebrados. Cuspi, desta vez com delicadeza e respeito, baqueada. Olhei ao redor e a brancura crua da realidade opaca envolvia-me, mancha vermelha num lençol imaculado. Levantei-me aos poucos, juntei minhas coisas e caminhei pra longe dali. Dessa vez, com mais delicadeza, preciso aprender a viver.